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Entrevista à Anne Louyot

 

   Paralelamente à minha formação artística, estudei arquitetura, o que criou em mim uma preocupação com a construção de planos e um interesse pelo espaço e pela relação que se estabelece entre a luz, a cor, a matéria e as distâncias. No início dos meus estudos, me dediquei principalmente ao desenho e a gravura. No ônibus entre São Paulo e Campinas, observava a estrada e as montanhas, a paisagem modificada pelo movimento. Meu caderno de desenho preenchia-se de linhas fluidas, justapostas, muitas vezes interrompidas, que tentavam exprimir a fugacidade daquela paisagem. Gostava de observar as massas sólidas e inertes das montanhas em contraponto ao céu, sempre em movimento. Os limites imprecisos das coisas, os planos que se fundem uns nos outros, as sutis diferenças entre cores muito próximas.

    A gravura me permitia condensar as imagens originadas dessa experiência, que era também contemplação, e traduzir essa impressão de suspensão e de silêncio. Eu procurava conferir às minhas gravuras uma qualidade atmosférica, superpondo camadas de lavis, ricas em meios-tons, para obter um efeito de densidade da superfície. Pouco a pouco, essa maneira de trabalhar me conduziu à pintura.

 

   Viver em São Paulo modificou meu olhar. A presença constante de ortogonais deu-me uma outra percepção da organização do espaço. Descobri a cidade como paisagem complexa, constituída de encruzamentos de eixos e de uma superposição apertada de planos. Mas o que mais me atraía eram os limites – jogos de luz e de espaço, janelas entreabertas, ângulos cortados, interstícios, lugares de surgimento e desaparecimento das formas. Após São Paulo, vivi um tempo em Londres. Lá, eu costumava subir nos telhados dos edifícios para desenhar a cidade, percebendo elementos cuja presença longínqua se impunha sobre a massa da cidade, como a cúpula verde de uma catedral. A cúpula quebrava a regularidade das formas urbanas – ela era como um hiato, um objeto suspenso, causando uma ligeira perturbação na paisagem. Isto se podia sentir até na relação entre a cúpula e o ar que a envolvia, que parecia mais denso, mais visível. Pintei essa paisagem muitas vezes, distinguindo os planos pelas cores: azul, cinza, preto, vermelho.

 

    Em seguida, comecei um grupo de pinturas, ainda relacionadas à paisagem, mas uma paisagem construída através da memória. Uma série de telas quadradas, inspiradas em desenhos que fizera do jardim da casa dos meus pais. Cadeiras, escadas, arcos – tudo mergulhado em uma atmosfera ‘líquida’, no sentido de que nelas, novamente, o ar se adensava, até parecer capaz de envolver tudo que nele se encontrava: entrevíamos os objetos que pareciam emergir da atmosfera circundante. Tudo isso através de uma paleta restrita, um cinza azulado que me evocava a substância da memória.

Foi a partir desse período que comecei a fotografar mais regularmente. Uma das fotos que orientou o curso de minhas pesquisas foi a de uma janela cujo vidro era recoberto de pintura e, portanto, se tornara opaco, impedindo que se olhasse através do vidro. Era uma metáfora material da pintura – a janela, olhar que atravessa as paredes; a pintura, superfície opaca que revela algo além de si mesma. Trabalhei inicialmente com carvão. Depois pintei as próprias janelas e molduras abandonadas que obtinha em depósitos ou coletava pelas ruas. Ao fazê-lo, tentava imprimir neles qualidades pictóricas, ao mesmo tempo em que procurava dar às pinturas sobre tela, que trabalhava paralelamente, um pouco da materialidade desses objetos.

 

    De volta a São Paulo, continuei a fotografar e pintar. Não raro, eu trabalhava a superfície da pintura raspando-a com uma espátula para retirar fragmentos de matéria. Explorava as ranhuras, os limites. Sempre a questão dos planos, mas sobretudo os espaços que os separam. As fotos tinham também o mesmo olhar - tentavam captar os intervalos, as ambiguidades do espaço – o cheio (superfície) que podia ser interpretado como vazio (intervalo), planos distintos que pareciam fundir-se sob a ação da luz.

 

    Aos poucos, a prática da fotografia adquiriu uma autonomia, mesmo que estivesse ainda fortemente ligada à reflexão sobre a pintura. Na verdade, a fotografia era uma maneira de continuar a pintura, uma vez que eu encontrava nela certos elementos comuns – grandes superfícies coloridas, jogos de luz e planos.

    A pintura, para mim, é um desafio constante. Um percurso semeado de armadilhas técnicas e semânticas. A fotografia e a gravura me permitem ir adiante quando sinto um impasse na pintura. Qual é meu objetivo verdadeiro? Não quero uma pintura ilustrativa, tampouco nostálgica. Gostaria de fazer uma pintura incrustada no presente: que tenha um corpo, uma presença. Uma pintura-lugar, dotada de uma potência própria, capaz de sugerir significados e não encerrar-se numa única chave interpretativa.

 

   Quando tive contato com a arte românica, alguns aspectos me tocaram particularmente. A precisão dos intervalos e das distâncias, dos cheios e dos vazios. A singularidade com que cada lugar cumpre, através de sua forma e matéria, o sentido a que foi originalmente designado. A força da arquitetura, que reúne as outras expressões artísticas, como a pintura e a escultura. O diálogo entre a arquitetura e a paisagem, a pedra e a luz. Mas o que mais me fez refletir foi a experiência que vive aquele que entra nesse lugar – um lugar capaz de lhe remeter a si mesmo.

 

    Para a exposição na igreja de Anzy, eu queria explorar certos aspectos dos quais falamos durante o curso: o vazio e o cheio, a presença do lugar, a luz que revela essa presença. Escolhi assim mostrar algumas fotos que fiz em São Paulo, onde havia trabalhado esses elementos. Galpões abandonados, muitas vezes em ruína, mas habitados por luz e silêncio. Havia imagens coloridas, ampliadas; e outras em preto-e-branco, em formato reduzido, as quais dispus em pequenas caixas de papelão, furadas com duas ranhuras, uma para recolher a luz das janelas, outra para permitir que o espectador percebesse a imagem. As imagens coloridas habitavam o espaço da igreja; as caixas exigiam ao espectador que fosse até elas. A idéia era a de transpor fragmentos da cidade de São Paulo que pudessem estabelecer uma comunicação silenciosa com o espaço de uma igreja românica, e trazer o espectador da igreja para São Paulo.

 

    Essas caixas, para mim, com seu papelão cru, eram, ao mesmo tempo, alusões às pedras da igreja (por sua cor e volume) e à matéria da cidade (por se tratar de um material industrial). Uma maneira de falar sobre os intervalos entre as épocas e os lugares. Imagens suspensas, que apesar de tratarem de uma cidade metropolitana como São Paulo, propõem uma certa lentidão.

 

    Quando me imagino na igreja, sinto a experiência dos cheios e dos vazios, do percurso entre a entrada e os poços de luz do cruzeiro, sob a cúpula.

 

 

Anne Louyot

(texto publicado no livro:  Lugar, Tempo, Olhar – Arte Brasileira na França Românica. São Paulo, Atelier Editorial, 2009, p. 93-96)

 

 


 

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