top of page

Entrevista  à Priscila Rufinoni

1. Temas como "a pintura da pintura", "o retorno da pintura", todo esse arcabouço teórico em que se apoiou a crítica para permitir que ainda se pintasse após o decretado fim do ato de pintar, fizeram com que cada vez mais a pintura parecesse uma escolha anacrônica. Como se deu essa sua opção por esse meio?

 

   Talvez em meu caso fosse mais acertado dizer que foi o meio que me escolheu... Quero dizer que não foi uma escolha racional: sempre tive desejo de pintar, antes mesmo de optar pelo curso de artes plásticas, quando então tive um contato mais formal com a arte e essa vontade se afirmou, embora percebesse um certo ‘mal-estar da pintura’ que já se fazia presente no meio artístico. Com o tempo, a prática, e o estudo, fui percebendo as razões dessa ‘desconfiança’ em relação à pintura de maneira mais consciente, fato esse que só fez aguçar o desejo de pintar: vejo, sim, no ato de pintar, um desafio e também uma atitude de resistência – não de uma bandeira romântica, mas de pensar suas características como um meio histórico, ligado a uma tradição humanista, e seu contraponto com a perspectiva atual. Gosto do tempo que envolve a pintura – tanto do fazer, como o do apreciar – que, para mim, não é anacrônico, embora vá na direção inversa da aceleração do ritmo contemporâneo e da natureza das imagens que se produzem nesse cenário. Portanto, o ato de pintar para mim, longe de ser anacrônico, é uma necessidade, uma não-adesão, uma atitude questionadora frente a certas facilidades da vida contemporânea. Mas, ele nasce, antes de tudo, de um desejo que, como tal, merece respeito.

 

2. Em outras palavras, por que você acha que a pintura parece sempre precisar ser (re)apresentada ao público contemporâneo, demandando sempre complexas elaborações teóricas em cada uma de suas reapresentações?

 

   Justamente por essa visão de que a pintura, hoje, seria uma prática anacrônica, que, ao meu ver, é equivocada. É evidente que pintar envolve desafios e você estar consciente deles ajuda a encará-los. Por outro lado, ao pintar, um artista nunca deve estar ‘amarrado’ a nenhum princípio conceitual ou teórico prévio – a pintura não deve se resumir a ilustrar nenhuma teoria, nem mesmo em causa própria. Esses temas ‘a pintura da pintura’ ou ‘o retorno da pintura’ obedecem mais a uma lógica de mercado (e curatorial) do que propriamente ao movimento da criação pictórica: os pintores continuaram pintando, independente se advoga-se o fim, o retorno, a ‘reencarnação’, enfim, termos que, no meu entender, esvaziaram-se de sentido.

 

3. Para alguns críticos, a pintura possibilita, por sua fatura e por seus resultados, uma imagem mais pregnante, uma imagem mais espessa. Sem fazer juízos valorativos, esse tempo da pintura contraditaria o "tempo contemporâneo", marcado pela rapidez, pela imagem rasa, rápida, fotográfica, ou essa é uma contraposição simplista?

 

   Sim e não. Porque, de fato, a pintura e a fotografia (assim como qualquer meio expressivo) apresentam suas especificidades e, neste caso, são, à primeira vista, quase antagônicas. Mas a própria fotografia tem sua história ligada à linguagem pictórica, assim como a pintura sofreu influência da fotografia ao longo desses anos. Muitos pintores contemporâneos têm, em seu processo de criação, uma relação estreita com a fotografia, assim como a situação contrária também é bastante comum (uma fotografia que se aproxima de um olhar pictórico). Eu mesma tenho muito a dever não só à fotografia, mas também ao cinema, outro campo contemporâneo que lida com a imagem. Poder-se-ia dizer que, por lidar com a imagem em movimento, o cinema seria o meio mais adequado para tratar da imagem nos tempo atuais, mas, acredito que isso seria tratar a questão de maneira rasteira. O tempo, a temporalidade, não se limita à sucessão de momentos ou quadros. Portanto, a pintura pode ser um meio extremamente pertinente para tratar do “tempo contemporâneo” mesmo não tendo (e também justamente por não ter) os recursos da fotografia ou do cinema.

 

4. Ainda sobre essa temporalidade espessa que a pintura parece carregar, a fatura e o imaginário pictórico carregam também um certo peso da história; a pintura contemporânea resgata, talvez, um embate com a tradição ou mesmo com a memória corporal e visual. Como você vê a relação da sua pintura com a "Pintura" como "tradição" em seus vários sentidos?

 

   Nunca tive uma atitude de ruptura ou tentativa de ruptura com a tradição. Ou seja, nunca vi a tradição como força opressora, muito ao contrário. Parece-me que para nós, brasileiros, a relação com a tradição na arte seja outra que para um europeu, por exemplo. Acredito que essa ‘crise’ da arte que, entre outros aspectos, é uma crise que se debate com a tradição é, essencialmente européia, e, com tal, precisa ser ‘atualizada’ em território americano (como no caso brasileiro). Vejo muito mais a situação brasileira como falta de elos do que de elos que devam ser rompidos. É claro que se pode argumentar que o mundo de hoje é globalizado, sem fronteiras, etc, mas todos sabemos que essas fronteiras são ainda muito visíveis e presentes. Portanto, ao lidar com essa situação, pergunto-me se não há algum proveito em se transitar marginalmente no mundo (em termos econômicos, sociais, culturais). Isso pode significar não termos que importar toda crise (ou ao menos não do mesmo modo), mas até contribuir (exportar soluções) para o desenlace dela.

 

5. Por outro lado, a pintura moderna firmou a idéia de uma fatura auto-referente, avessa às relações externas, sejam elas narrativas ou tradicionais. Como a pintura contemporânea – a sua pintura – se posiciona frente a essa imposição moderna da auto-referência? Essa também não é uma forma de embate com a tradição?

 

   Acredito que a atitude moderna da auto-referência seja dificilmente sustentável hoje, mesmo porque sabemos que foi um conceito construído, em grande parte, pelo discurso greenbergniano, e que vem sendo relativizado. Mas o exercício da auto-crítica, da auto-referência, de voltar-se para a própria linguagem da qual se faz uso é uma atitude, até certo ponto, saudável e necessária. Neste sentido, é, sim, uma forma de embate com a tradição que alguns podem precisar e querer encarar.

 

6. Nas mostras que tratam dos "retornos da pintura", constantemente vemos obras que não são pinturas senão a partir de habilidosos torneios discursivos. A seu ver, quais seriam as especificidades do ato de pintar na contemporaneidade? Ainda é possível se falar em uma especificidade, em auto-referência, em "pintura"?

 

   Não em uma única especificidade, nem mesmo, algumas poucas (“ut picturas diversitas”...). Acredito que a linguagem da pintura tenha realmente se expandido, sobretudo após os anos de 1950 com a Pop, Minimalismo, a Land Art, e assim por diante. Aquilo que a princípio apontava para a extinção da pintura veio, na verdade, ampliá-la, renová-la. E hoje, passados esses anos, já se faz necessário um distanciamento frente à própria crítica da pintura: acredito que seria passivo demais uma atitude só crítica, é preciso propor, mesmo porque o momento não é o mesmo dos anos 60, não vivemos uma situação de uma oposição frontal à nada. É como se falássemos: ‘a crise já passou, e agora?’ Não dá mais para ficarmos paralisados, congelados por essa espécie de ‘ressaca da crise’. Acho essa pergunta fundamental e só ela mereceria uma discussão mais aprofundada – ela conflui para o mesmo eixo de questão que se coloca ao se discutir a pertinência de uma Trienal Latino-Americana, por exemplo.

 

7. E já que falamos em outras formas artísticas – a fotografia, por exemplo – qual a relação que você estabeleceria entre o ato de pintar e as demais formas de se conformar imagens? Há evidentemente trocas, embates, assimilações...

 

   Resvalei por essa questão anteriormente, mas acho que dá para acrescentar algo mais a partir da experiência com meu trabalho. O pensamento da pintura (aquele que guia, relaciona, organiza, reflete, percebe certos aspectos da pintura, como a cor, o espaço, os planos, a transparência/opacidade, a matéria, etc) pode migrar de meios. A minha formação se deu muito pela gravura e principalmente, pela pintura. De uns oito, dez anos para cá, meu interesse por outro meio expressivo – a fotografia – se intensificou e ganhou autonomia. Mas é fato que ela traz em si um olhar que vem da pintura. O curioso é que esse movimento (da pintura à fotografia) deu mais uma volta adiante: minhas últimas pinturas devem muito às fotografias recentes. A fotografia digital e o computador incrementaram o caldo – recortar, ampliar e intensificar campos de cor na tela de luz do computador, além de serem práticas utilizadas para pensar a imagem fotográfica, também vieram ampliar possibilidades no processo mais abrangente de pintar. Mas isso é muito pessoal – acredito que a pintura para se expressar em toda a sua potencialidade não precisa necessariamente de outras ferramentas. Isso vai depender do processo de cada artista, e do discernimento da necessidade real ou não do imbricamento com outros meios para se realizar.

 

 

Entrevista elaborada a partir da análise da exposição Ut Picturas Diversitas (Galeria Marta Traba, SP/SP, 2007) e publicada na revista  “Visualidades” - Programa de Mestrado em Cultura Visual, VOl. 7, n. 2 Jul/Dez 2010, p. 269-287.

 

 

 

 

 

bottom of page