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            A obra “Você pode ver em seus olhos (autorretrato) ” é uma empreitada peculiar desta série de trabalhos da artista. Um grande rosto que salta aos olhos, primeiramente pelo semblante triste e interiorizado da artista. Também se nota grande contrate claro/escuro no todo do quadro. Sofrimento? Confronto com uma faceta sombria? São perguntas que ressoam ao se deparar com este rosto a fitar a profundidade interna, uma espécie de momento fora do tempo e do espaço – o que obviamente desperta emoções e reflexão em que o olha.

            Pode-se fazer um paralelo com a obra “Persona” do cineasta Ingmar Bergman. Há cenas do filme em que ambas as personagens principais (Alma e Elisabeth) aparecem em closena tela, com metade da face escura. Obviamente não à toa, dado que o roteiro discute a questão da faceta mostrada em público (no meio social), em contraste com motivações e desejos internos, não comunicados aos outros, moralmente repreensíveis. Apesar do absoluto silêncio de Elisabeth, Alma destrincha seu drama, e de certa confunde o mesmo com os próprios conflitos.

            O psicólogo Carl Jung oferece aqui uma chave interpretativa interessante, quando apresenta seus conceitos de personaesombra. Em termos teóricos, persona e sombra são arquétipos; ou seja, são estruturas ou potenciais humanos que carregamos desde o nascimento. A grosso modo, personadiz respeito ao modo como nos mostramos ao mundo externo, a parte de nossa personalidade revelada para as outras pessoas. O nome foi inspirado no termo romano para designar a máscara do ator da tragédia para compor os papeis e personagens, isto é, o rosto que transparece do palco para a plateia (mundo social). A sombraseria aquilo que justamente está fora do lado iluminado pelo eu (ego) e sua persona. É composta de elementos pessoais e coletivos que permanecem inconscientes, formando uma espécie de personalidade parcial, com tendências opostas ou complementares à atitude habitual do eu. 

           Esta ideia condiz com a concepção de multiplicidade interior que perpassa a obra de Jung. Aquilo que acreditamos muitas vezes ser quando estamos diante de outras pessoas pode representar, no fundo, algo irreal, secundário: um contrato entre o interno e o externo, um personagem pouco significativo, atuando num primeiro palco. Entretanto, por detrás disso há outros eus, com desejos muitos diversos e até mesmo opostos ao eu contido na persona. Somos habitados por personagens, não temos uma verdade e sim pontos de vista na psique. O termo sombra indica justamente aquilo que está fora do foco de luz da consciência, mas tem enorme importância na composição da subjetividade.

           Claro que não se sabe literalmente o que o silêncio da artista Calzavara diz, mas não é difícil deduzir um conflito gerado pela dor de estar tomada parcialmente pela sombra. Se esta série da artista enfoca os múltiplos pontos de vista e os erros sem importância – que de forma paradoxal passam a ser vitalmente relevantes – o autorretrato não é uma exceção, apesar da diferença visual que carrega. O iluminado e o sombrio levam para o ponto de vista mais misterioso e errante: o da profundidade interna. Assim como no caso do filme de Bergman, apesar de não se saber muito da vida exterior de Elisabeth, adentramos em seu sofrimento psíquico, proporcionado pela companheira que, não por acaso, leva o nome de Alma. Vale lembrar, por último, que Jung chamou de alma (seele) a ponte para as inúmeras potencialidades arcaicas do humano.  

 

Guilherme Scandiucci

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